Manuela Cantuária

Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

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Manuela Cantuária
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Quantas vezes já ouvi: 'Minha vida daria um filme'

O que realmente importa é que nunca se deve confiar em uma roteirista

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"Ah, você é roteirista? Minha vida daria um filme." Esse punhado de palavras mágicas é capaz de parar o tempo, interromper a dança frenética dos átomos, me transformar em uma estátua viva involuntária —incapaz de reagir, de correr ou de pedir socorro.

É impressionante como uma conversa trivial entre duas pessoas que acabaram de se conhecer pode, de uma hora para outra, arreganhar um portal para um universo completamente desconhecido, que me atrai e me repele com a mesma intensidade.

Agora não existe a possibilidade de recuar. A vida de alguém está prestes a passar diante de mim, como um filme que ainda não foi filmado —e provavelmente nunca o será.

Não sou a primeira roteirista a lidar com essa situação e não serei a última. Se cada trabalhador do audiovisual ganhasse cinco reais cada vez que passasse por isso, talvez nosso mercado não estivesse em crise. Por mais que meus colegas também já tenham visto esse filme muitas vezes, nenhum de nós sabe como ele acaba.

É uma roleta-russa emocional. Pode ser uma história trágica, excessivamente íntima, despretensiosamente hilária ou apenas desinteressante. Às vezes é só uma desculpa para desabafar.

Película de filme sendo q no lugar de cada imagem tem uma nota de 5 reais.
Ilustração de Silvis para coluna de Manuela Cantuária de 13 de maio de 2024 - Silvis/Folhapress

Nascido em uma pequena cidade nórdica, descobriu que havia se apaixonado por sua meia-irmã. O pai era doador de esperma e acabou sendo exposto pelas autoridades locais por ter excedido o limite de doações previsto pela lei.

Uma professora do ensino fundamental usava seu laptop para projetar sua aula. É quando surge na tela, para todo mundo ver, uma notificação de e-mail enviado por uma funcionária da escola, com o assunto: "Estou grávida do seu marido".

Um motorista de táxi é vítima de um misto de assalto e sequestro. O bandido, em fuga, encontra uma mochila no banco de trás, esquecida pelo passageiro anterior, e abre para ver o que é. Uma vestimenta de Exu. Evangélico, desce do carro, assustado, sem levar nada. O motorista acabou se convertendo à umbanda.

É por isso que a frase "minha vida daria um filme" me causa um duplo arrepio: o medo de a história ser péssima e o medo de a história ser boa (e não ter sido inventada por mim). Se essas que acabei de contar são boas histórias que ouvi, ou péssimas histórias que inventei, o que realmente importa é que nunca se deve confiar em uma roteirista.

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